quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Veículos Previamente Texturizados

Quase todas as pessoas podem identificar texturas em uma pintura, desenho ou escultura. Embora exija um nível de conhecimento acima de iniciante, é possível identificar textura mesmo quando insuspeita, ou onde, aparentemente para o leigo, ela não foi pretendida como alternativa de expressão. Por exemplo, quando um desenhista força muito um lápis sobre papel ou cartão, comparativamente à pressão que exerceu nos demais traços, ele produz textura, negativa, mas ainda assim expressiva.

Em qualquer situação na qual se apliquem volumes de tinta maiores do que se vêem nas áreas mais delicadas, ou seja, volume não homogênio, haverá textura positiva. quando em uma pintura há uma única área ou elemento vermelhão, em meio a tons neutros ou de médio cromatismo, haverá textura, não volumétrica mas sim cromática. A maioria dos materiais alternativos, que não tintas, incorporados à pintura também produzirão textura. A emotividade do pintor ou o uso de acessórios para aplicação (esponjas por exemplo) produzem textura. Se em uma escultura em madeira, o artista agrega material de acabamento em uma parte e deixa outras na fibra natural, a distinção deverá ficar visível.

Emfim, é importante compreender as texturas como parte da expressão, porém independentemente da cor. Elas provocam ilusão de tridimensionalidade, quer para cima (positiva) quer como baixo relevo (negativa). As texturas alteram ou condicionam a reflexão da luz na superfície do veículo. Produzem um tipo de agressividade subjetiva, que "toca" nossas estruturas psicoemocionais de julgamento, voluntariamente ou não.

Elas são um atributo técnico da pintura, do desenho e da escultura, tão forte, que seu uso pode ser muito exigente quando  apenas é aplicado localizadamente. Talvez por essa razão, uma solução simplista mas não simplória (ingênua) seja texturizar todo o veículo previamente, e somente depois começar a pintura propriamente dita. Trataremos aqui desta opção, depois de sugerido um entendimento genérico das texturas, e seu efeito.

Antes consideremos alternativas de veículo, pois que apresentam propriedades mecânicas e químicas peculiares. Podem ser, além das telas de tecido convencionais (canvas, linen, veludo, etc), madeira, placa compensado ou aglomerado, placa de celulose, placa flexível sintética (vulcanizada, polimérica, vinilizada), ou ainda placas e folhas metálicas (alumínio, flandres, broze, cobre, aço, ufa...), são muitas as possibilidades e todas com características próprias.

Nos desenhos os papéis e cartões têm geralmente a textura da própria fibra, não acetinada, por isso são chamados papel de desenho, distintos pela marca ou pelo material característico (Canson, Ingres Fabriano, Kraft, papel bananeira, folha de ouro, papel manteiga, etc) e ainda distintos pela sua gramatura (gr/cm2). O desenho em geral não inibe o efeito visual da textura do veículo, como pode acontecer nas técnicas de pintura.

Na pintura a aquarela a textura é preservada e se constitui da maior importância, devido a uma exigência fundamental de um outro fundamento que qualifica esta linguagem milenar. O atributo da transparência torna esta técnica tão simples, algo de extrema dificuldade, e estabelece grau de mestria. Isso porque a transparência é a ilusão de ótica produzida quando a luz do fundo, ou do veículo (normalmente branca) perpassa a camada de tinta. Em geral o aquarelista prefere abortar a corrigir erros sobrepondo sucessivas  camadas de tinta, justamente porque acabam por inviabilizar a transparência dos tons, devido à opacidade. A textura potencializa a transparênncia.

Na pintura a bastão pastel, seco ou oleoso, as texturas têm igual importância. Agora a mestria estará em deixar mais pigmentos encrustrados na microtextura do veículo (cromatismo) sem, entretanto, "matar" ou saturar o efeito da textura, muito comum no pastel oleoso, pouco miscível, donde a expressão "empastelar" correspondente ao nome da técnica.

Afinal, chegamos ao "mignon". Acrílica e tinta a óleo sobre textura. Tecnicamente, a diversidade de materiais é imensa, mas haverá mestria no domínio de uma relação intrínseca. As texturas, sedutoras e complexas que são, têm influência exógena, ou seja, seu efeito depende diretamente da distância focal do observador. Texturas grossas ou agressivas exigem ambientes espaçosos. Mas elas também determinam, para dentro da obra artística, o nível de datalhamento da imagem. Isso porque o detalhamento, principalmente o realístico, pode exigir texturas finas ou delicadas, para que seja viável defini-lo.

A texturização pode ser feita, no caso de veículos rijos, por redução da reflexão da superfície, através de raspagem, lixamento, goivamento (entalhe) e riscamento. Mas é nos veículos maleáveis (tecidos e lonas) que estão a preferência e a maior complexidade. A texturização, à revelia da sua beleza, deve atender à exigência de permanência, não soltar, escamar, fissurar ou quebrar.

Como exemplos de materiais que podemos agregar ao tecido das telas (será mais complicado esticar no chassis depois da textura agregada) incluimos aqui como exemplos: os papéis amassados e depois desamassados, as malhas de fibra natural como juta, algodão e sisal, as massas resinadas (massa corrida), as massas plásticas, estas alteradas por corrosão química ou por calor (massarico), e ainda as próprias tintas, deformadas pelo processo químico chamado craquelamento.

Pois bem, a dificuldade mais comum é o surgimento de bolhas, e decorre da exalação de gases das colas à base de água (nitrogênio e oxigênio principalmente). A solução mais simples para evitar o dano é usar cola de contato (de sapateiro e marceneiro), e aplicar as faces com espátulas flexíveis, plásticas ou acrílicas, por modo de ir expulsando o ar de entre uma e outra face.

Há uma discriminação negativa em relação a massa corrida de parede. Mas nem sempre se justifica. O rachamento não aparecerá facilmente em camadas finas. Misturar previamente uma medida pouca de glicerina (em vez de água) na massa corrida terá duas consequências antagônicas para o artista apressado: acrescentará maleabilidade, porém retardará a secagem da massa de texturização. As massas plásticas e vinílicas, ou tintas semelhantes, apresentam resultados semelhantes com vantagem na plásticidade de aplicação, mas grandes volumes podem sair caro.

Os resíduos como areia de rio, serragem de madeira ou limalha metálica (purpurina) também podem dar texturas finas e homogêneas interessantes, depois de misturadas com cola. Outra dica insuspeita: quando cortamos tecidos que desfiam, produzimos fios embaraçados que descartamos com raiva. Porém, se acumulados, ou conseguidos em locais de costura industrial, podem resultar, mesmo ambaraçados, em uma textura delicada e feminina. O popular saco de batatas (sisal ou juta) dará rusticidade ao trabalho artístico e pode ser comprado a metro. Em lojas especializadas de tecidos podemos descobrir uma variedade inebriante de possibilidades, já padronizadas pelo fabricante, bastando colar tecido, renda ou o que for, sobre um tecido de fundo, normalmente muito barato.

Artistas do tipo artesanais, esmerados, corajosos e pacientes, procuram nas matas folhas bem finas que põem para secar, e depois as colam sobre a tela, quase uma a uma, fazendo assim a textura apelidada de chão da mata, cama de onça ou simplesmente textura de folhas.

Enfim... A arte é também, num conceito adjacente, um estado de espírito, irrequieto, despojado, livre, e desafeto de formas preconcebidas rigorosas, engessadoras. E o artista, muito especialmente aquele que pretenda primar pela criatividade, precisa visceralmente da rebeldia das formas e estruturações artísticas preconcebidas. O quanto ele arrastará isso para outros territórios da vida, e pagará o preço dessa opção, só poderá ser uma opção autêntica dele próprio.

O fato aqui é que a mente humana, é condicionada a racionalizar através de referências. Digo humana para não me estender pela metafísica e pela teosofia, por exiguidade de espaço neste artigo. E isso significa ser extremamente difícil conceber algo absolutamente novo, o que se caracteriza justo pela ausência de referência antecedente durante o processo criativo.

Contudo, a experiência e o bom senso ensinam: a se pagar caro demais, é preferível ser menos pretensioso na criatividade, e esperar mais confortavelmente que a prática ofereça oportunidades inesperadas. Entre os extremos de não criatividade e o de novidade absoluta, muitos resultados intermediários são possíveis e bastante prazeirosos. O espírito da arte não pode ser encoleirado ou retido em uma lâmpada de Aladim, mas por vezes tentamos fazer algo assim, quando elegemos objetivos muito radicais e excludentes.

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