sábado, 7 de outubro de 2017

Os Poderes da Arte

Durante os anos em que recebi pessoas interessadas em conhecer meus conceitos e técnicas, incontáveis vezes sustentei que o exercício da arte leva muitas pessoas a se exercerem mais profundamente, e não apenas numa técnica, que aliás não é inata, diferentemente da nossa sensibilidade.

Fazer arte produz muito mais do que obras artísticas. Mas naquela época, muitas pessoas achavam, e por vezes o afirmavam, que minha insistência nessa ideia estaria contaminada, de vez que o pagamento deles me ajudava a comprar ao menos o bifinho de acém de cada dia.

Pois bem, ajudava mesmo, mas essa convicção não era uma estratégia minha de vendas. Os anos passaram, há muito não dou mais aulas regulares, mas minha ideia ao longo do tempo, além de não se apagar, ficou ainda mais clara e respaldada por mais exemplos, colhidos no simples cotidiano.

A arte leva a exercer a alma e a sua sensibilidade intrínseca, mas há outros potenciais igualmente intrínsecos na nossa alma, relacionados a incontáveis conveniências e necessidades da vida de cada um. Se a gente abrir as comportas de uma represa, o fluxo seguinte do rio aumentará para todas as pedras que lutam para não serem arrastadas, e não apenas para uma ou outra delas.

Por exemplo, no fim da vida e com disponibilidades de aposentados, muitas pessoas sentem necessidade de lutar contra a sensação de ser inútil, de produzir alguma coisa. A arte propicia esse preenchimento e, de quebra, engrossa de motivos a relação com as demais pessoas, porque todos descobrem coisas antes insuspeitas.

Para alguns o silêncio íntimo é um paraíso, com anjos dando bom dia e boa noite em baixo de cada árvore, à medida que nosso pensamento segue caminhando. Entaum não precisamos chegar a nenhum lugar.

Mas no outro extremo de possibilidades o silêncio pode ser um deserto, habitado por demônios que a todo momento surgem das areias, e sussurram besteiras com a voz do vento. Essas pessoas precisam desesperadamente chegar a algum lugar, no mínimo ter um rumo, uma perspectiva boa, e ouvir outras pessoas.

Mudando o foco para o início da vida, crianças e adolescentes têm verdadeira compulsão por algo que dê vazão à sua necessidade de realização, o que leva à compulsão de experimentar e absorver coisas novas, para preencher seus vazios ociosos. Não tendo a arte como meio, eles se apegarão a qualquer outro meio de conseguí-lo, talvez escolhendo muito mal. E pior, escondendo isso.

Uma criança com alguma patologia que iniba sua expressão, tornando o seu psiquismo pouco acessível ao tratamento, pelo exercício artístico criará canais de extravasão e absorção antes inexistentes. E não se pense que uma criança normal teria menos proveito.

Mesmo depois de passar pela juventude, quando já temos responsabilidades e somos diariamente avaliados pelo nosso chefe, por vezes sob a pressão do rigor técnico ou da concorrência profissional, precisamos de coisas que o exercício da arte pode oferecer, como por exemplo a metodicidade, a habilidade manual, as capacidades de projeção espacial e da organização lógica.

A maioria das pessoas vê um problema como fotos de delegacia policial, sob o título "Procura-se". Ou seja, de frente e sob um único perfil. Pois bem, o exercício da arte induz ao hábito de ver por muitos ângulos, de eliminar possibilidades criteriosamente, de traçar metodologias para a consecução de um objetivo mais amadurecido, de hierarquizar e organizar procedimentos, de tirar partido das opiniões críticas adversas e de ter mais domínio da expressão, enfim, a arte impõe ao artista lúcido mais do que compreender o que vê, mas o como (e porque) é visto pelas outras pessoas.

No mesmo caminho, um profissional com uma solução complexa apenas na sua cabeça e diante de diretores exigentes, talvez incrédulos, irá a um quadro de exposição e rapidamente rabiscará um diagrama acessível, com bom aproveitamento do espaço disponível.

Quem exerce arte plástica cria e desenvolve sempre do início para o fim, dos limites da área útil para os elementos mais importantes da configuração, da iluminação ambiente para os efeitos especiais, e dos planos de fundo para os da frente. Isso educa a mente a ver a criação artística como processo organizado, e transferir esse foco para as demais coisas da vida será algo natural.

Pessoalmente, enquanto orientador, sempre acrescentei um conceito meu aos que propus acima. Um artista funciona como um canal subconsciente interativo, dentro dos limites da sua intuição, do seu interior nada silencioso. Entretanto, não deve entregar as rédeas nas mãos da intuição, sem a vigília da sua racionalidade. E por quê?

Nada tenho contra a intuição, muito pelo contrário. Ela costuma ser o único acesso para o universo que escapa à racionalidade e, quase sempre, o acesso que é palmilhado pela criatividade. Contudo, o artista deve construir sua identidade, seu papel no mundo e sua responsabilidade autoral segundo escolhas suas lúcidas. E isso exige a autocrítica isenta e a racionalidade no comando. Assinar uma obra pode e deve significar mais que intuição, e até mais que dom artístico.

Todas essas potencialidades da arte podem ser aproveitadas em muitos campos de atuação da vida. Mas deixei para o final o que julgo ser o maior dos poderes, aquele que estabelece a relação do artista com o universo humano exterior. O poder de despertar a subjetividade de outros é o que justifica a existência do artista no mundo.

Muitas vezes as pessoas cristãs se mostraram simpáticas, a um comentário meu entendido como graça ou folga, mas que reflete minha convicção cristalina: "O artista é o mais cristão dos rebeldes, pois veio ao mundo para ser julgado e não para julgar".

A razão disso é desconhecida de artistas que ainda estão a meio caminho da sua lucidez. A luz da arte não se consuma no interior do artista. É como um circuito, que só se fecha na escuridão subjetiva do observador. Enquanto a luz do artista estiver refém dele próprio, ela será inútil para o mundo, e o seu poder será como um circuito incapaz de produzir saudáveis choques na consciência.

(Lou Poulit, 2.017 - Direitos Reservados)

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