domingo, 22 de outubro de 2017

Começando Abstratos


Como disse anteriormente, o abstracionismo surgiu do ideal de excluir as formas conhecidas da linguagem artística, o que significa abrir mão das estruturas psicoemocionais que a elas associamos ao longo da vida, e que nos servem de referência no processo subjetivo de interpretação.

Apenas como distinção prévia, necessária desde o início ao entendimento de quem pretenda fazer uma escolha entre alternativas de pintura, lembre-se de que os abstratos podem ser formais ou informais. Ou seja, excluir as formas por completo pode ser desafiante por demais, além do que, não temos que fazer um pacto de lealdade com uma ou outra alternativa. Podemos começar um caminho e depois mudar para outro, desde que cheguemos a algo que nos recompense. Em arte sempre há caminhos.

Ora, o que acontece no exercício da pintura com a ausência de formas conhecidas? Não usamos formas, contudo a expressão de uma pintura não se restringe à forma. Na ausência dela outros atributos da pintura serão fortalecidos, ou até exacerbados, com o objetivo de tornar o trabalho interessante. São vários atributos, além do que o grau de importância também pode ser diversificado. Podemos eleger apenas um atributo para exacerbar a sua expressão específica. Mas também podemos escolher um grupo de atributos, sem a obrigatoriedade de equilibrar as suas importâncias.

O que pode parecer absurdo para o figurativista intransigente, a ausência ou indefinição de figuras, normalmente é o mais sedutor no abstracionismo: a surpresa subjetiva e o caráter desafiador que uma pintura pode oferecer à sensibilidade de quem se predisponha a perscrutá-la. A interpretação pode se tornar uma espécie de joguinho muito pessoal e seguro. Como não se espera uma interpretação unânime, o observador fica a vontade para "viajar" e para não se preocupar com um erro interpretativo, ou seja, o julgamento alheio não recai sobre o julgador.

Os atributos são características técnicas que o artista deve eleger prévia e lucidamente, por forma de estabelecer um caráter técnico para sua linguagem, agregar autenticidade ao seu trabalho e de desenvolver sua identidade artística. O surgimento do abstracionismo não apenas alforriou os desenhistas pouco convincentes, como também criou um limiar larguíssimo para as técnicas de efeito aleatório e de materiais alternativos, aplicados diferentemente das colagens.

Eis um ponto essencial no exercício dos abstratos: até onde manter um efeito aleatório? Ele não pode ser repetido e isso fragiliza a autoria. Como assinar lucidamente uma obra cuja expressão foi produzida pelo acaso? Que tipo de artista se envaideceria por isso?

Com grande frequência os efeitos aleatórios, bem como os de movimentos repetidos mecanicamente, revelam-se belíssimos, mas sobretudo surpreendentes. Tristemente surpreendente é, de outras vezes, perceber que não paramos no momento exato e perdemos o melhor efeito.
Os melhores resultados de abstratos exigem durante a criação uma autocrítica constante e panorâmica, uma harmonia confortável mas criteriosa entre o imaterial (subjetivo, interior) e o material (domínio da técnica, exterior).

Bem, hora de entender melhor o que chamei de atributos, que podem ser muitos mas podemos simplificar para quem inicia. O mais básico é a configuração da imagem, a visão do conjunto, dos limites dimensionais e da profundidade (planos de perspectiva). Em uma pintura figurativa haveria formas a serem definidas e posicionadas, num abstrato devemos identificar na configuração inicial, por projeção mental, áreas e planos de profundidade como que sobrepostos, e entender que eles não têm de estar contidos na área útil configurada.

Então partindo de uma luz (cor) homogênea, normalmente branca mas não necessariamente, o artista vai recompondo a configuração e criando uma expressão sem formas reconhecíveis, redefinindo áreas e deslocando planos para o fundo e para a frente.

Pode-se usar definições exatas (traços) sem construir formas conhecidas, mas pode-se também criar definições por distinção de texturas e/ou temperatura (cores frias e quentes), ou ainda usar algum material alternativo, como por exemplo papel laminado, borra de café, areia e conchinhas, enfim... uma incontável variedade de possibilidades, tudo tratado pela cor, que é o segundo atributo básico dessa nossa explanação.

O terceiro atributo é o volume do material. Comparados a uma superfície lisa do veículo (tela, placa...) quase todos os materiais terão volume distinto, e não apenas a tinta espatulada. E isso geralmente resulta em uma configuração de volumes, que tem tudo a ver com a ilusão de tridimensionalidade da expressão. Volumes maiores e mais "agressivos" parecerão mais próximos e áreas finas parecerão afastadas na perspectiva imaginária de fundo.

Há ainda a possibilidade do volume cromático, que se distingue da "massa" de material. É o "peso subjetivo", ou simbólico, de determinadas cores normalmente muito quentes (vermelhões e amarelões), que podem dominar a expressão pictórica, atrair a subjetividade como se por gravidade. Contudo, numa pintura monocromática dessas cores "pesadas", o efeito talvez não ocorra. Ele exige o contraste forte da vibração das cores.

Do volume vamos para outro atributo, o equilíbrio (ou não) decorrente da distribuição de massas e pesos cromáticos. Os observadores de abstratos são menos exigentes nesse ponto do que os de figurativismo. Porém este texto prioriza como alvo artistas e futuros artistas, cuja compreensão não deve desprezar o equilíbrio. Assm, se um pintor quiser desequilibrar sua pintura, que o faça lucidamente, como parte da sua linguagem, e não faça parecer ausência ou vício de domínio técnico.

O quinto e último atributo básico desta explanação leva o foco para o abstracionismo formal. A crueza interpretativa da ausência de forma encontrou alívio no primarismo dos abtratos. As formas primárias geométricas foram bem aceitas e por fim desaguaram no geometrismo abstrato. Elas têm uma linguagem subjetiva insuspeitamente poderosa, como se nossa intelectualidade não pudesse inibir a permeabilidade da alma ao geometrismo. Tipo uma linguagem universal, que nos colocasse de volta numa caverna, cercados pelas sombras projetadas por nossas consciências a partir do crepitar tagarela de uma fogueira. O geometrismo abstrato nos reduz à nossa essência humana de postulantes ao intelecto. Nem mesmo cientistas frios e calculistas resistem a essa sedução, quando formulam o entendimento do universo.

O abstracionismo só tem um método aceito por unanimidade. Abstracionismo não se aprende, mas se desenvolve. Algumas técnicas podem encurtar o caminho, mas nem tanto. É pegar algum fundo e aplicar materiais para provocar efeitos, com maior ou menor grau de domínio, isso não importa a princípio. E nos faz lembrar da ideologia dos peregrinos, como os do Caminho de São Thiago de Compostela, e que tantas vezes devemos trazer para o cotidiano da vida... O que importa é amar mais o caminho, e nem tanto o destino pretendido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário