terça-feira, 24 de outubro de 2017

Começando Abstratos II

Há dois princípios básicos no desenvolvimento de pintura abstrata, que podem se confundir ou mesclar de modo que se tornem pouco distinguíveis no final da execução. O que os diferencia, no início da execução, é o grau de racionalidade ou concepção prévia, o uso da intuição e do efeito aleatório, e a noção de continuidade em relação ao desenvolvimento do estudo.

No primeiro caso, o artista aplica algum material sobre o veículo, geralmente na área central, para criar uma expressão inicial interessante e capaz de "protagonizar" solitariamente o conjunto da obra. E se dedicará a isso porque todo o foco interpretativo ficará concentrado nessa área. Nos próximos passos ele desenvolverá abstratamente o contexto ou ambiente subjetivo, que agregará sentido ao protagonista, acrescentando ou não áreas coadjuvantes de interesse. O trabalho é feito de dentro para fora.

Como opção contrária, o pintor pode iniciar pela criação do ambiente, inclusive aleatoriamente, e só depois de satisfeito nessa etapa escolher racionalmente o protagonista. Neste caso, como já há uma definição de contexto pictórico, ele se sentirá seguro para duplicar, multiplicar, pulverizar, ou refletir protagonistas, criando uma outra relação, a de uns com outros, além da relação com o plano de fundo.

O abstracionismo formal permite ainda a predefinição não de um elemento, mas da ideia de que um conjunto deles pode fazer o papel de protagonista. Nessa vertente de conceito, elementos geométricos acomodados em grupo ou sobrepostos evoluiu para um conceito diferenciado que fez moda por certo tempo. Essas composições tinham a aparência genérica de urbanidade ou modernidade, foram chamadas de construtivismo e usadas também para sugerir equipamentos mecânicos e outros engenhos.

Veja que podem haver dois extremos no processo criativo, ambos desvantajosos, o de abandonar a intuição e o de abandonar a racionalidade. Melhores resultados virão na medida em que o artista for capaz de explorar melhor uma combinação profícua dos dois. Assim, não abortará prematuramente um trabalho promissor, nem tão pouco consumirá tempo e material à toa, não agregará ao mesmo trabalho ideias que poderiam ser melhor desenvolvidas à parte, e nem deixará que se percam ideias preciosas.

Um procedimento que dá muito bons resultados, embora seja normalmente desprezado, principalmente quando experimentamos algo inédito, é trabalhar com um estágio de teste. Ou seja, criamos o hábito de testar o efeito previamente, em um veículo acessório. Ainda que estejamos usando uma técnica cujo efeito não possa ser repetido, ao aplicá-la no definitivo teremos mais maturidade e controle.

Outra distinção importante é o tipo de veículo químico da tinta que utilizamos. O que temos no mercado ou é à base de água ou de óleo, e existem diversas propriedades químicas e mecânicas que os distinguem. Por exemplo, as partículas sólidas de pigmento e outros componentes podem ter tamanhos muito diferentes, mas com certeza elas apresentarão resultados de acomodação por gravidade e de miscividade em função do meio, menos denso da água e mais encorpado do óleo.

Há também uma preocupação geral com a alternativa de aplicar água e óleo em um mesmo trabalho. Naturalmente, as moléculas de um e de outro não se misturam facil e permanentemente. Contudo, há algo mais grave capaz de estragar um bom trabalho, que terá efeito retardado, só perceberemos tardiamente.

Ocorre que essas tintas aquosas e oleosas reagem distintamente, ao longo do tempo, às variações climáticas. Com o calor elas dilatam e com o frio se contraem. Ora, se sobrepostas, as moléculas de adesivo presentes nas tintas, e na área de contato entre ambas, não resistirão infinitamente aos esforços de dilatação e de contração sucessivos. A consequência será o que chamamos descolamento de camadas ou escamação.

Mas em geral a arte não gosta da ideia de que isso ou aquilo seja impossível ou proibido. É possível sim misturar tintas dos dois tipos, desde que dentro de certos limites técnicos. Isso estará na razão direta dos volumes aplicados, da secagem da primeira antes da segunda aplicação, e da preferência de aplicar tinta a óleo sobre tinta à base de água, porque o meio oleoso é mais plástico e resistente.

Mas sim... estamos falando de pinturas abstratas, portanto em princípio desobrigadas de aparências conhecidas. Daí que podemos usar veículos previamente tratados, para compor texturas sob a pintura que não se encontram prontas. Por exemplo amassando papel sêda, ou laminado, depois desamassado e colado no veículo. Nesse caso a ilusão de tridimensionalidade virá do veículo e não apenas da pintura.

Na mesma vertente, podemos usar muitos materiais alternativos até como pigmento artesanal. A borra de café que se jogaria no lixo pode produzir aguadas lindas, e até espatulada com adição de algum adesivo, tipo uma pequena parte de goma arábica. Várias sementes tropicais contém pigmentos de considerável permanência, como a do urucum. A grande concentração de moléculas de carbono existente nos carvões vegetais idem. O uso de serragem peneirada, além de vários tons terrosos ou amadeirados, pode oferecer efeitos surpreendentes, em razão da sua permeabilidade diferenciada. Enfim, o exercício do abstracionismo tem imensa vocação para laboratórios, em face da liberdade e do despojamento técnico que lhe é intrínseco. A ausência de referências faz parecer que tudo é inusitado, e a surpresa subjetiva é extremamente sedutora, antes para o próprio autor e depois para o admirador de arte. Há quem queira parar o sol, ou a lua, só para ficar especulando sobre como o artista conseguiu determinado efeito.

Consideremos agora a mecânica da aplicação, cujo efeito poderá ser diretamente relacionado à emotividade do autor no momento da execução. Nossas mãos e dedos são terminações nervosas que funcionam como fiéis da emoção. Fácil é imaginar que a flexibilidade das cerdas dos pincéis façam esse papel. Mas não apenas elas. Usamos espátulas, gravetos esfiapados, esponjas e lãs metálicas, que acumularão tinta sob a pressão de aplicação e produzirão efeitos específicos. Aplicamos o princípio da serigrafia se pintamos sobre um tipo de tela, efeito finalizado a seguir, pela retirada cuidadosa da tela. Ou pintamos sobre uma tela fechada, e depois emborcamos essa camada sobre a pintura.

Agora algo que pode ser surpreendente. Invertemos a construção do cromatismo quando usamos solventes químicos parcimoniosamente. Ou seja, em vez de acrescentarmos cor, empalidecemos certas áreas ou elementos, lavando com água abundante no momento de interromper o processo. Será como na técnica de pátina, raspando-se a superfície pintada por cima para revelar a cor de baixo.

Isso tudo que escrevi já é muito como ideia. Bom mesmo será quando você parar de ler, e partir para a experimentação. Não seja apressadinho. Uma coisa de cada vez. Você vai se surpreender com seus próprios resultados.


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