Há dois princípios básicos no desenvolvimento de pintura abstrata, que podem se confundir ou mesclar de modo que se tornem pouco distinguíveis no final da execução. O que os diferencia, no início da execução, é o grau de racionalidade ou concepção prévia, o uso da intuição e do efeito aleatório, e a noção de continuidade em relação ao desenvolvimento do estudo.
No primeiro caso, o artista aplica algum material sobre o veículo, geralmente na área central, para criar uma expressão inicial interessante e capaz de "protagonizar" solitariamente o conjunto da obra. E se dedicará a isso porque todo o foco interpretativo ficará concentrado nessa área. Nos próximos passos ele desenvolverá abstratamente o contexto ou ambiente subjetivo, que agregará sentido ao protagonista, acrescentando ou não áreas coadjuvantes de interesse. O trabalho é feito de dentro para fora.
Como opção contrária, o pintor pode iniciar pela criação do ambiente, inclusive aleatoriamente, e só depois de satisfeito nessa etapa escolher racionalmente o protagonista. Neste caso, como já há uma definição de contexto pictórico, ele se sentirá seguro para duplicar, multiplicar, pulverizar, ou refletir protagonistas, criando uma outra relação, a de uns com outros, além da relação com o plano de fundo.
O abstracionismo formal permite ainda a predefinição não de um elemento, mas da ideia de que um conjunto deles pode fazer o papel de protagonista. Nessa vertente de conceito, elementos geométricos acomodados em grupo ou sobrepostos evoluiu para um conceito diferenciado que fez moda por certo tempo. Essas composições tinham a aparência genérica de urbanidade ou modernidade, foram chamadas de construtivismo e usadas também para sugerir equipamentos mecânicos e outros engenhos.
Veja que podem haver dois extremos no processo criativo, ambos desvantajosos, o de abandonar a intuição e o de abandonar a racionalidade. Melhores resultados virão na medida em que o artista for capaz de explorar melhor uma combinação profícua dos dois. Assim, não abortará prematuramente um trabalho promissor, nem tão pouco consumirá tempo e material à toa, não agregará ao mesmo trabalho ideias que poderiam ser melhor desenvolvidas à parte, e nem deixará que se percam ideias preciosas.
Um procedimento que dá muito bons resultados, embora seja normalmente desprezado, principalmente quando experimentamos algo inédito, é trabalhar com um estágio de teste. Ou seja, criamos o hábito de testar o efeito previamente, em um veículo acessório. Ainda que estejamos usando uma técnica cujo efeito não possa ser repetido, ao aplicá-la no definitivo teremos mais maturidade e controle.
Outra distinção importante é o tipo de veículo químico da tinta que utilizamos. O que temos no mercado ou é à base de água ou de óleo, e existem diversas propriedades químicas e mecânicas que os distinguem. Por exemplo, as partículas sólidas de pigmento e outros componentes podem ter tamanhos muito diferentes, mas com certeza elas apresentarão resultados de acomodação por gravidade e de miscividade em função do meio, menos denso da água e mais encorpado do óleo.
Há também uma preocupação geral com a alternativa de aplicar água e óleo em um mesmo trabalho. Naturalmente, as moléculas de um e de outro não se misturam facil e permanentemente. Contudo, há algo mais grave capaz de estragar um bom trabalho, que terá efeito retardado, só perceberemos tardiamente.
Ocorre que essas tintas aquosas e oleosas reagem distintamente, ao longo do tempo, às variações climáticas. Com o calor elas dilatam e com o frio se contraem. Ora, se sobrepostas, as moléculas de adesivo presentes nas tintas, e na área de contato entre ambas, não resistirão infinitamente aos esforços de dilatação e de contração sucessivos. A consequência será o que chamamos descolamento de camadas ou escamação.
Mas em geral a arte não gosta da ideia de que isso ou aquilo seja impossível ou proibido. É possível sim misturar tintas dos dois tipos, desde que dentro de certos limites técnicos. Isso estará na razão direta dos volumes aplicados, da secagem da primeira antes da segunda aplicação, e da preferência de aplicar tinta a óleo sobre tinta à base de água, porque o meio oleoso é mais plástico e resistente.
Mas sim... estamos falando de pinturas abstratas, portanto em princípio desobrigadas de aparências conhecidas. Daí que podemos usar veículos previamente tratados, para compor texturas sob a pintura que não se encontram prontas. Por exemplo amassando papel sêda, ou laminado, depois desamassado e colado no veículo. Nesse caso a ilusão de tridimensionalidade virá do veículo e não apenas da pintura.
Na mesma vertente, podemos usar muitos materiais alternativos até como pigmento artesanal. A borra de café que se jogaria no lixo pode produzir aguadas lindas, e até espatulada com adição de algum adesivo, tipo uma pequena parte de goma arábica. Várias sementes tropicais contém pigmentos de considerável permanência, como a do urucum. A grande concentração de moléculas de carbono existente nos carvões vegetais idem. O uso de serragem peneirada, além de vários tons terrosos ou amadeirados, pode oferecer efeitos surpreendentes, em razão da sua permeabilidade diferenciada. Enfim, o exercício do abstracionismo tem imensa vocação para laboratórios, em face da liberdade e do despojamento técnico que lhe é intrínseco. A ausência de referências faz parecer que tudo é inusitado, e a surpresa subjetiva é extremamente sedutora, antes para o próprio autor e depois para o admirador de arte. Há quem queira parar o sol, ou a lua, só para ficar especulando sobre como o artista conseguiu determinado efeito.
Consideremos agora a mecânica da aplicação, cujo efeito poderá ser diretamente relacionado à emotividade do autor no momento da execução. Nossas mãos e dedos são terminações nervosas que funcionam como fiéis da emoção. Fácil é imaginar que a flexibilidade das cerdas dos pincéis façam esse papel. Mas não apenas elas. Usamos espátulas, gravetos esfiapados, esponjas e lãs metálicas, que acumularão tinta sob a pressão de aplicação e produzirão efeitos específicos. Aplicamos o princípio da serigrafia se pintamos sobre um tipo de tela, efeito finalizado a seguir, pela retirada cuidadosa da tela. Ou pintamos sobre uma tela fechada, e depois emborcamos essa camada sobre a pintura.
Agora algo que pode ser surpreendente. Invertemos a construção do cromatismo quando usamos solventes químicos parcimoniosamente. Ou seja, em vez de acrescentarmos cor, empalidecemos certas áreas ou elementos, lavando com água abundante no momento de interromper o processo. Será como na técnica de pátina, raspando-se a superfície pintada por cima para revelar a cor de baixo.
Isso tudo que escrevi já é muito como ideia. Bom mesmo será quando você parar de ler, e partir para a experimentação. Não seja apressadinho. Uma coisa de cada vez. Você vai se surpreender com seus próprios resultados.
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