sexta-feira, 4 de dezembro de 2015



MAGOS E PINTORES


Na idade média, também dita idade do chumbo numa metáfora associada à ignorância das pessoas, ninguém do povo sse arriscaria a destratar um pintor em público. Eles eram respeitadíssimos, assim como os ferreiros, oleiros e outros transformadores, que guardavam a sete chaves seus segredos. Mas a razão verdadeira é que assim agiam por um medo, baseado no pavor do inferno incitado pelas igrejas cristãs. No caso do pintor parece absurdamente estranho e injusto. Mas é simples de se entender.

Os pintores não eram magos. Contudo, para os leigos algumas características apontavam nessa direção, por comparação com outras situações semelhantes. Primeira, eles viviam em lugares lúgubres, sombrios, secos e frios, porque assim era mais seguro para os seus segredos técnicos, porque temperatura e umidade altas favorecem a deteriorização de matérias orgânicas, e porque não haviam lojas como as de hoje para comprar tudo já prontinho para uso.

Segunda, havia a figura o aprendiz, comum na companhia de feiticeiros. Normalmente era um rapaz sob completa submissão, que fazia tudo ou quase sob penas severas por desobediência ou comportamento inadequado, especialmente por vazar informações técnicas, ou de natureza pessoal do seu mestre. Eles suportavam muitas adversidades por longos períodos, pelo seu ideal de um dia ser também considerado um mestre, e dispor da generosidade dos nobres burgueses e da nobresa propriamente dita.

Antes do sol se levantar, a pintura começava na cozinha. Tudo, e não apenas tintas, era preparado artesanalmente e não haviam conservantes químicos tão poderosos como os de hoje. A regra mais eficiente era o mais elementar possível: inibir o contato do ar. E daí a terceira e mais assustadora característica que os relacionava aos magos. Depois de preparadas as misturas de pigmentos, o pintor acondicionava cada porção em vesículas e outros órgãos vazios e ressecados, extraídos de animais tais como de coelhos, ovelhas, gatos e cachorros... Que diferença fazia o antigo dono, depois da bexiga bem amarradinha?

Apesar do possível asco, isso funcionava muito bem na hora do uso. O pintor fazia um pequeno furinho, apertava e extraía a quantidade densa que lhe aprouvesse. Depois bastava apertar o furinho como numa dobra. O material excedente secava fechando o orifício, o ar não entrava e, quando fosse novamente necessário usar a mesma mistura, ela continuava perfeita. A densidade retardava a acomodação de moléculas mais pesadas dentro da vesícula, e isso assegurava a homogeneidade do tom de cor.

Portanto, querido artista, se algum admirador leigo disser com exaltação que você é um mago, ainda que seu ego resista aceite-se como de fato é. Não é uma vergonha não ser um mestre, e muito menos ser um aprendiz, há muitas possibilidades entre os dois extremos. Você é um aprendiz, como todos somos, já mais adiantado do que o seu admirador! Você não precisará dormir num quarto separado dos aposentos do papa por uma passagem secreta, só para escapar da fogueira.

Ora, você não precisa ser um mestre à moda antiga. E ainda assim poderá fazer suas próprias experiências com pigmentos brutos. Vá numa loja e compre todo o resto do material. Mas pelo amor de Deus, não procure macumbas para conseguir vísceras! Não pela igreja ou pela fogueira, mas porque hoje as leis de proteção aos animais são rigorosas. Você não estará fazendo sofrer nenhum animal que, inclusive, já estaria morto, mas... Os artistas nunca foram bem compreendidos.

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